18.4.24
Diário de Bordos - Le Marin, Martinique, DOM-TOM França, 18-04-2024
16.4.24
Diário de Bordos - Fort-de-France, Martinique, DOM-TOM França, 16-04-2024
"Oiça um bom conselho..."
Tal como o caminho mais curto é aquele que conhecemos, o amor mais sensato é amar quem nos ama. Uma das metades está feita, a mais difícil.
15.4.24
Sonhos, filmes
Trevas e sonhos são como o rabo e as calças, andam frequentemente juntos mas nem sempre. As sestas quotidianas produzem sonhos e são feitas às claras. E nem todas as noites me lembro dos sonhos ao acordar. A capacidade onírica de um sono não depende da luz exterior. Verdade seja dita: ignoro totalmente de que depende. Sei que a maioria dos meus sonhos tem um pormenor que me faz perguntar por onde é que as sinapses absorveram tanta informação. Pelos olhos? Ouvidos? Pele? Outra pergunta: que raio de coisas me anda a circular pelas sinapses? Que segredos escondem os neurotransmissores que por elas passeiam? E como os guardam tanto tempo, às vezes? Porque é que os sonhos adquiriram esta carga conotativa tão favorável, quando por vezes são tão aterradores? Não me refiro sequer aos pesadelos, mas aos sonhos normais, que vão buscar pormenores quase microscópicos, sonhos kafkianos, hiper-realistas do absurdo?
Dizem que sonhar é como ir ao cinema enquanto se dorme. Eu preferiria escolher o filme e deixar as trevas para quem gostar de filmes de terror.
14.4.24
Monólogos breves. Ou: Autobiografia resumida. ou: Aonde
- Não estou aonde quero estar.
- Aonde queres estar?
- Aonde não estou.
Diário de Bordos - St.-Anne / Le Marin, Martinique, DOM-TOM França, 14-04-2024
Domingo é dia de praia, de maneira venho aos piratas em St.-Anne. Viemos no bote, o tripulante e eu, um bocado a arrastar-se. O destino original era a praia de Salines e o meio a boleia mas no último momento mudei de ideia. Não me apetece perder tempo na borda da estrada num dia tão bonito.
Preparo-me para a semana que vem: gelcoat na plataforma, ver se encontro uma solução para o esgoto dos duches, reclamar com a Polymar. Esta última tarefa – que será a primeira amanhã de manhã – será provavelmente inútil, mas pelo menos terei reagido. Mais vale perder do que não tentar. Isto dito, esta merda «interpela-me», entre aspas porque cito e é meio irónico meio dubitativo. A verdade é que gosto de ver o uso nas coisas. Gosto de ver-lhes a patine. Não gosto é de as ver negligenciadas, maltratadas. Uma coisa usada e bem tratada tem mais charme e é mais bonita, para mim, do que uma usada como nova. Ou seja: esta história da mesa do salão irrita-me triplamente. Primeiro por causa da mancha, segundo por me irritar a este ponto e terceiro por não conseguir perceber porque me irrita tanto.
O que aconteceu foi isto: fui à Polymar comprar acetona e outras coisas para fazer
o gelcoat. Na loja pedi um saco de plástico para envolver a garrafa.
Esse conjunto foi para dentro do meu saco impermeável e veio para bordo. Lá chegado
pego no saco de plástico, apercebo-me de que está molhado e penso que é água,
ponho-o em cima da mesa do salão e claro, não era água, era acetona. O frasco
tinha uma fuga gigantesca (enfim, quase) na tampa. Meia hora a lixar com lixa
mil serviu para atenuar bastante a mancha, mas ainda lá está, visível. Voltei
à Polymar para trocar a garrafa e avisar o homem da loja – por sinal bastante
simpático – do caso. Disse-lhe que me vou embora para a semana e que não haverá
tempo para reparar a coisa aqui, mas amanhã vou lá consolidar a reclamação. Não
servirá de nada, repito. A crença nos «actos de Deus» está entranhada no código
genético desta actividade. Mas eu pergunto-me por que raio de carga de água é
que Deus dirige sempre os seus actos contra nós, marinheiros e não a favor.
Raio de Deus este... (A resposta à pergunta é fácil, claro. Isto é retórica de
escapa, mais nada.)
Por outro lado, porque não considerar esta mancha uma simples consequência do uso, a primeira letra de patine? Há várias respostas possíveis. Em primeiro lugar, porque eu sei que o proprietário não partilha a minha opinião sobre a beleza das marcas de uso nas coisas; em segundo porque é resultado não de um uso normal mas de um erro grosseiro. Um garrafa nova e com a tampa ainda por abrir não deve ter fugas daquelas, muito menos num produto como a acetona. Felizmente não tinha o computador no saco e a máquina fotográfica estava dentro do seu invólucro. Em terceiro lugar, porque a mancha não é bonita, por muito ténue que seja. Lembro-me uma vez que deixei um ferro de passar em cima de uma mesa. A proprietária reclamou bastante (e quem sou eu para não lhe dar razão?) Mas a mancha não estava mesmo no meio da mesa e tinha a forma bonita, geométrica, triangular do ferro.
Não sei. Sei que estou fulo e que amanhã o meu dia vai começar com uma luta quixotesca e perdida, passe o pleonasmo. E sei que o restaurante dos piratas em St.-Anne (Pirate's beach) é bonito, que daqui a pouco vou nadar um bocadinho, que depois vou lavar a roupa, a que se seguirá um almoço rápido a bordo e uma sesta reparadora e restauradora. (Nb.: desaprovo inteiramente esta romantização da pirataria, actividade ignóbil praticada por homens - e algumas mulheres, que eram ainda piores - abjectos, hediondos, indignos, vis e tudo o que de repelente e reles a humanidade produziu.)
.........
O meu corpo abandono-me, escrevi recentemente. Claro que o mais sábio é habituar-me à ideia, que de resto nem sequer é assim tão recente. O meu conhecimento de farmácias, médicos, hospitais e centros de saúde aumentou em flecha nestes últimos seis anos. De Cuxhaven até ao Marin passando por Palma e por Cascais, Lisboa, Coimbra e Porto tem sido um vê se te avias. «Pelo menos ainda podes ir ao médico», dir-me-ão. «Pior será quando não puderes. Isto tem de ser discutido, se possível em presença dos netos, para que a resposta tenha um forte viés positivo; isto é, negativo. Isto é «está calado e cala-te.»
........
De vez em quando venho ao Mango. Continua um sítio porreiro se a) não se comer e b) não se esperar que volte a ser o que era: ponto de encontro, agência de trabalho e centro noticioso. O resto continua igual (ou quase. O pessoal era mais simpático e os preços não eram lunáticos). A localização e a decoração que se lhe adequa como rum a uma goela.
13.4.24
Monólogos breves
- Este corpo que pouco a pouco deixa de me pertencer...
- Tens a certeza de que alguma vez foi teu? Vivias na ilusão, meu caro.
- Uma entre muitas.
12.4.24
Diário de Bordos - Le Marin, Martinique, DOM-TOM França, 12-04-2024
Isto está simultaneamente de maré baixa e de mau tempo e eu faço o que sempre faço nessas circunstâncias: cozinho devagar e oiço Leonard Cohen. Devagar não é uma imagem: refogar cebola, cenoura, pimento, carne picada e bacon separadamente, como se fosse uma ratatouille, é coisa que só se pode fazer de mau tempo e em terra. Depois juntei tudo numa panela com o que sobrava de uma late de tomate, acrescentei água e um copo de vinho tinto, deixei cozer um par de meias-horas, troquei a Chavela Vargas pelo Leonard, pus algum rum no copo que antes contivera vinho e pronto, a memória cavalga de novo por esses tempos fora, à rédea solta e leva-me a uma senhora que gostava tanto como eu do Cohen e que deixei fugir por causa da hubris, esse sinónimo de estupidez tantas vezes ignorado.
Ninguém imagina o que é esperar por peças. Uma vez no Panamá precisava de uma junta de cabeças para um motor (não me lembro da marca) e recebi por três vezes a junta errada. A empresa que mas enviava era a única em praticamente todos os Estados Unidos que as tinham e sabiam-no, de maneira recusavam absolutamente assumir as consequências do erro. Diziam-me, quando eu reclamava «compra-as noutra loja». Acabei por ter de pedir a um mecânico americano e amigo para as ir buscar em pessoa e vir ao Panamá montá-las. O transporte custava duas ou três vezes o que custavam as juntas e de qualquer forma não havia no Panamá quem mas conseguisse montar, de maneira acabei por pagar digamos dois ou três mil uma peça que custava cem, talvez quinhentos com a montagem. Esperar por peças é o Inferno do navegante, assim mesmo com maiúscula não vá o diabo pensar que estou a fazer pouco dele.
Trata-se apenas de não ceder, como sempre. «Never give an inch.» Não ceder. Ir com a corrente mas controlar a rota. Não encalhar nem ir pela cascata abaixo. Ir dormir. Pode ser que amanhã tenha um gancho qualquer à espera. De qualquer forma não há mais rum e não vou sair.
11.4.24
Diário de Bordos - Le Marin, Martinique, DOM-TOM França, 11-04-2024
9.4.24
Em paz, pá
Diário de Bordos - Le Marin, Martinique, DOM-TOM França, 09-04-2024
Já não estou sozinho a bordo e recomecei a cozinhar. Uma parte significativa da minha felicidade passa pelo estômago. Ou melhor: pelas papilas gustativas. Quando sou eu que cozinho e o resultado me sai bem essa felicidade é multiplicada por dois. Por três quando é apreciada pelo ou pelos convivas. Hoje foi um desses dias. Costeletas de porco num molho de vinho tinto, gengibre, salsa e tomilho - previamente marinadas nesse mesmo vinho tinto, alho, paprika e pimenta - e puré de batata com a exacta quantidade de noz moscada e leite. Tudo isto regado por um Bergerac mais do que bebível e que não chega a cinco euros a garrafa (para a cozinha usei uma coisa do Aude a dois vírgula oitenta e oito, o que no Marin deve ser um recorde. Nem o vinagre é tão barato). O jantar foi acompanhado por Koko Taylor porque o tripulante é jovem e não o quero massacrar com Hildegarde von Bingen, que é o que a situação mereceria. O horrível ano de dois mil e vinte e três está quase a acabar: as dores são cada vez mais meros incómodos, o jovem é uma maravilha que me traz à memória os meus chauffeurs etíopes no Burundi - todos eles dignos, sóbrios nas manifestações, competentes, profissionais até dizer chega. Pouco efusivos e dignos. Deixo aqui uma mensagem pública de gratidão ao H. P., prova viva - juntamente com a M. T. - de que é possível trabalhar com portugueses. Basta ter sorte e isso é coisa de que me sinto inundado, apesar de a época não ter corrido de acordo com o plano. ¿Qué importa? Teria navegado e ganhado mais, sofrido menos, ido às Grenadines e quem sabe mesmo até Grenada. Não fui. Em vez disso fui operado por uma médica competente - e linda, o que não estraga nada -, tratei do S. D., tarefa de que gosto tanto como de tratar de uma pessoa que precisa de mim, vou navegar a direito daqui para St. Maarten - dois dias e meio de mar no mínimo, um excelente aperitivo para a travessia, que me permitirá conhecer o bote mais do que o conheço hoje. A minha luta em favor do TCA (ou contra, depende da perspectiva) deu um gigantesco passo em frente. O projecto de Caminha está em marcha. Vai demorar anos? Vai. Não terei massa para a exposição? Paciência. Haverá outras. Continuo a pensar que devia gerir a minha massa como faço com a dos outros? Antes assim do que ao contrário. Continuo a pensar que não devia ser como sou e devia ser como não sou? Continuo, mas isso pouco muda à realidade - «sou como sou e é tudo o que sou» - e ao fim destes anos todos isso não me aquece nem arrefece. Só tenho pena de quem tem de me aguentar como sou - mas não obrigo ninguém a fazê-lo. A mistura de Koko Taylor, Bergerac, rum HSE (em breve), um tripulante que é uma dádiva, uma travessia em perspectiva, a capacidade de ler recuperada muito aos poucos mas crescente... Reinaldo Ferreira resume tudo num poema:
7.4.24
Diário de Bordos - Le Marin, Martinique, DOM-TOM França, 07-04-2024
O resultado de tudo isto é: venho ao Indigo beber uma cerveja e pensar que é uma injustiça não vir aqui mais vezes, perguntar-me por que raio de carga de água é impossível encontrar forma de carregar a frontal que me serve de luz de navegação no bote à noite (ainda tenho luz que chegue, apresso-me a esclarecer), perguntar-me porque sou tão mau a gerir as minhas finanças e tão bom quando a massa não é minha, perguntar-me porque tenho mais perguntas do que respostas acerca de tudo e mais alguma coisa. Devia ser ao contrário, devia saber tudo e descubro que não, não sei nada. Só sei perguntas e noventa por cento delas não têm respostas (estou a ser modesto. Essa proporção é muito maior.)
........
A noite está linda. Não há um sopro de vento e a água está que parece a mesa na qual escrevo. Não consigo acabar a cerveja mas faço um esforço. Antevejo o filme: Ir buscar a roupa ao secador; dobrá-la; pô-la no saco; ir para o bote; atravessar a marina; ir para bordo, fazer a cama; dormir. E ainda há quem não goste de finais felizes nos filmes.
5.4.24
Patriotismo, ou: Não há bela sem senão.
Penso nestes arremessos de «patriotismo» que vai entre aspas porque não sei se é a designação correcta. Mais certeiro seria chamar-lhe «indomável vontade de viver em Portugal apesar da quantidade de vezes que já tentei e não consegui». A primeira coisa que me ocorre é que não vem de hoje. Basta percorrer o DV muito por alto para ver posts sobre o «sedentarismo» e sobre a vontade que tenho de voltar à terra. A cada tentativa as circunstâncias acabaram por vencer, o que me levou a perceber que o meu amor por Portugal não passa de mais um amor não correspondido - como se fossem poucos. A vontade é antiga e o tempo consolida-a em vez de a erodir.
Os portugueses não são só cobardes, indecisos e incapazes de planear seja o que for. Somos gentis, honestos, hospitaleiros, gostamos de ajudar. Portugal não é só ruas sujas e selvagens ao volante, tal como não é só cozido à portuguesa e bifanas do Afonso, as noites de boémia no Bairro Alto ou os dias de vela na baía de Cascais, os amores ou as noites de solidão no Guincho.
O meu patriotismo é irracional. Há amores que o não sejam?
PS - Depois de um magnífico jantar com o núcleo duro dos amigos apercebo-me de que a mistura "patriotismo" precisa desta componente também.
Por muito que se goste de um país, o nosso é insubstituível: é uma mistura de razão e desrazão, de passado, presente e - queira Deus - futuro.
Gostamos do nosso país por causa de tudo o que dele não se vê.